No livro Revestido de Poder, de Gutierres Fernandes Siqueira, o leitor encontrará expressões como “o pentecostal Gordon Chown” e o “continuísta Wayne Grudem”1. Na coleção Debates Teológicos publicado no Brasil pela editora Vida, C. Samuel Storms é o representante dos continuístas e Douglas A. Oss, representa os pentecostais2. Mas afinal, qual a diferença entre um pentecostal e um continuísta se ambos creem na atualidade dos dons espirituais? No clássico “O batismo no Espírito Santo e com fogo”, de Anthony D Palma, um pentecostal é aquele que crer “na experiência subsequente à salvação acompanhada pelo falar em línguas”3. No pentecostalismo o batismo no Espírito Santo acontece após à conversão e sua evidência é o pronunciamento das línguas. A doutrina de que “sem línguas o crente não é batizado no Espírito Santo” é um distintivo pentecostal. O continuísta ensina que o batismo no Espírito Santo acontece na conversão e que não existe na Escritura a doutrina da “evidência inicial”, pois todos são batizados no Espírito, mas nem todos falam em línguas. Ambos, pentecostais e continuístas, diferentes dos cessacionistas, creem na continuidade dos dons espirituais (exceção dos dons fundacionais, principalmente os continuístas), mas os dois grupos se diferenciam na interpretação do batismo no Espírito Santo e suas implicações. Quem biblicamente está correto? Analisemos.
O BATISMO NO ESPÍRITO SANTO
A expressão “batismo no Espírito Santo” ocorre sete vezes no Novo Testamento e destas, seis referem-se ao Pentecostes (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5; 11.16). A sétima está em 1Co 12.13: “Pois todos fomos batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito”. Essa passagem bíblica é tão demolidora a compreensão pentecostal que os mesmos a dividem em “batismo pelo Espírito”, incorporação da pessoa no corpo de Cristo (conversão), e “batismo no Espírito” que é o revestimento de poder (línguas como evidencia). Ou seja, o pentecostal acredita no batismo “pelo” (“todo fomos batizados por um só Espírito”) e “no” (“a todos nós foi dado de beber de um só Espírito) para diferenciar a salvação do revestimento de poder ou segunda benção. Esse é um dos maiores exemplos de eisegese textual, impondo à Bíblia o que ela não diz para se adequar a crença do indivíduo. É uma leitura tão tosca que se esquece do pronome “todos” no início e final do versículo. Teológos pentecostais como Anthony D. Palma4 e Stanley Horton5 ensinaram tal distinção. Porém, o erudito pentecostal Gordon D. Fee explica: “Alguns têm argumentado em favor do batismo do Espírito, no sentido de uma experiência separada e distinta da conversão. Mas contra essa interpretação temos tanto a acepção de Paulo (em nenhum outro lugar ele usa esse termo nem aponta com clareza para uma segunda experiência) quanto a ênfase nesse contexto, que não está numa experiência especial com o Espírito além da conversão, mas no fato de que eles todos receberam o Espírito, ou seja, a experiência foi comum a todos”6.A expressão “batismo no Espírito Santo” é uma metáfora que nos lembra o batismo nas águas, um evento único, não repetível que ocorre apenas uma vez. Como disse John Stott: “O batismo de água é o ritual cristão de iniciação porque o batismo com o Espírito é a experiência cristã de iniciação”7.
A DOUTRINA DA “EVIDENCIA INICIAL” À LUZ DA BÍBLIA
A doutrina da evidência inicial segundo a qual só é batizado no Espirito Santo quem fala em línguas era desconhecida na história da igreja até o século XX, quando foi introduzida por Charles Fox Parhan8. Infelizmente Parhan foi um racista9, cria na doutrina da aniquilação10 e foi preso sob acusação de sodomia11. Foi devido a sua crença na aniquilação dos ímpios que William Seymour rejeitou a doutrina da evidência inicial. Os pentecostais fundamentam a “evidência inicial” no livro de Atos capítulos 2; 8; 10 e 19 cuja narrativa cumpre a expansão geográfica prometida por Cristo em Atos 1.8: “Mas recebereis poder quando o Espírito Santo descer sobre vós; e sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalém [Atos 2], como em toda a Judeia e Samaria [Atos, 8 e 10], e até os confins da terra [Atos 19]”. Em cada um dos relatos indicados temos grupos e não indivíduos numa experiência corporativa do início da igreja cristã. A “evidência inicial” é uma doutrina antíbiblica por várias razões: 1) Separa as pessoas no corpo de Cristo entre batizados no Espírito e não batizados, numa interpretação flagrantemente contrária a 1Co 12.13; 2) Supervaloriza as línguas ao ponto de que um crente não recebe os outros dons se não falar em línguas, ou seja, o batismo no Espírito Santo é a “porta de entrada” para os demais dons espirituais, contradizendo o que diz a Escritura em 1Co 12.10,28,30;14.5; 3) Faz uma distinção entre línguas como evidência do batismo e línguas como dom do Espírito que não se encontra em lugar algum da Bíblia; 4) Contradiz o “todos batizados” em 1Co 12.13 e a pergunta retórica de Paulo: “Falam todos em línguas”? de 1Co 12.30. Para o apóstolo todos são batizados no Espírito e nem todos falam em línguas. Porém, no pentecostalismo somente os que falam em línguas são batizados no Espírito Santo; e 5) Em igrejas pentecostais as línguas são condições para o exercício de funções eclesiásticas como diaconato e presbiterato, requisito não estabelecido nas cartas pastorais (1Tm 3; Tt 1).
O BATISMO E O ENCHIMENTO DO ESPÍRITO
A Bíblia não ordena a buscar o batismo no Espírito Santo, mas nos exorta a nos “enchermos do Espírito Santo” (Ef 5.18). Teólogos pentecostais querem negar essa distinção. O teólogo pentecostal, Stanley Horton (1916-2014) chegou a dizer: “Alguns tentam fazer uma distinção entre ser batizado no Espírito Santo e ser cheio. Na verdade, a Bíblia usa uma variedade de termos. Com essa variedade de termos, é impossível supor que o batismo seja diferente de enchimento”12. Em Atos dos Apóstolos há inúmeros exemplos de crentes cheios do Espírito Santo sem a menção de que falaram em línguas.
· Todos foram cheios do Espírito Santo, o lugar tremeu, mas não falaram em línguas: “E, quando terminaram de orar, o lugar em que estavam reunidos tremeu. Todos foram cheios do Espírito Santo e passaram a anunciar com coragem a palavra de Deus” (At 4.31);
· Igreja escolhe diáconos que sejam cheios do Espírito Santo, mas não menciona as línguas: “Portanto, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarreguemos deste serviço” (At 6.3);
· Estevão cheio do Espírito Santo viu a glória de Deus, mas não falou em línguas: “Mas Estevão, cheio do Espírito Santo, com os olhos fixos no céu, viu a glória de Deus, e Jesus em pé à direita de Deus” (At 7.55);
· Paulo, recuperou sua vista e ficou cheio do Espírito Santo e não se menciona o falar em línguas: “Ananias foi e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Saulo irmão, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, enviou-me para que voltes a enxergar e fiques cheio do Espírito Santo. Logo caíram-lhe dos olhos algo como umas escamas, e ele recuperou a vista. Então, levantando-se, foi batizado” (At 9.17,18). O batismo aludido é o batismo em águas (At 22.13-16).
· Paulo, mais uma vez cheio do Espírito Santo, sem as línguas: “Todavia, Saulo, também chamado Paulo, cheio do Espírito Santo, fixando os olhos nele” (At 13.9);
A DIFERENÇA PRÁTICA ENTRE PENTECOSTAIS E CONTINUÍSTAS
Os continuístas são considerados cessacionistas pelos pentecostais devido ao estereótipo e o imaginário social do que seja um pentecostal. Mesmo que ambos os grupos creiam na contemporaneidade dos dons espirituais, as diferenças doutrinárias sobre o batismo no Espírito Santo implicarão em práticas distintas na vida e no culto. Os continuístas, diferentes dos pentecostais, não convidam pessoas para receberam o batismo no Espírito, e consequentemente não realizam “cultos avivamentistas”. Igrejas continuístas levam mais a sério as orientações bíblicas de 1 Coríntios 14 para que haja ordem e decência no culto. Continuístas não creem em línguas como evidências do batismo e línguas como dom do Espírito, uma separação forçada pelos pentecostais. O que cremos é no dom de línguas, que semelhante aos outros dons, é “distribuído individualmente conforme [o Espírito Santo] deseja” (1Co 12.11), e sua prática na congregação segue os critérios bíblicos de poucas pessoas falarem em línguas no culto, quando muito três, caso haja intérprete e se não há, aquele que tem o dom fale consigo mesmo e com Deus (1Co 14.26-28). Na pregação devemos usar a língua comum para edificação da igreja e não o uso de línguas (glossolalia) na exposição da palavra como fazem os pregadores pentecostais (1Co 14.18,19).
Referências bibliográficas
[1] SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. Revestido de Poder uma introdução à teologia pentecostal. Rio de Janeiro - RJ, CPAD 2018, pp. 60,67.
[2] GRUDEM, Wayne (organizador). Cessaram os dons espirituais? 4 pontos de vista. São Paulo: Editora Vida, 2003, pp. 181,252.
[3] PALMA, Anthony D. O Batismo no Espírito Santo e com fogo. Rio de Janeiro – RJ, CPAD, 2020, p. 7.
[4] PALMA, Anthony D. O Batismo no Espírito Santo e com fogo. Rio de Janeiro – RJ, CPAD, 2020, p. 21.
[5] BRAND, Chad Owen (organizador). O Batismo no Espírito Santo um debate entre tradições. Natal, RN: Carisma, 2019, p. 113.
[6] FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito Santo e o povo de Deus. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2015, p. 240, 241.
[7] STOTT, John. Batismo e plenitude do Espírito Santo. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2007, p. 45.
[8] MCGEE, Gary (editor). Evidência inicial Perspectivas e bíblicas sobre a doutrina pentecostal do batismo no Espírito Santo. Natal RN: Carisma, 2019, p. 45.
[9] SYNAN, Vinson e JR. Charles Fox. William Seymour a biografia. Natal RN: Carisma, 2017, pp. 98,99, 102
[10] SYNAN, Vinson e JR. Charles Fox. William Seymour a biografia. Natal RN: Carisma, 2017, pp. 99,101,109.
[11] ARAÚJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro, RJ: CPAD, 2007, pp. 600,606.
[12] BRAND, Chad Owen (organizador). O Batismo no Espírito Santo um debate entre tradições. Natal, RN: Carisma, 2019, p. 100.
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